Afinal, o que é santidade?
Não é aos ateus nem aos
visitantes das nossas igrejas que dirijo esta pergunta, mas aos próprios
crentes, aos que já são membros duma igreja.
Vejamos em primeiro lugar
qual o significado de santidade nas Escrituras.
A palavra hebraica
geralmente traduzida por santo, é a palavra “kadosh”, que corresponde à palavra
grega “agios” que na origem significavam simplesmente separado.
Por exemplo, em João
10:36 “Àquele a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo.....” aqui, santificar
só pode significar separar ou consagrar.
Mas então, como e porque
é que o significado destas palavras: santo, santidade, santificar... evoluiu
até ao significado que hoje lhe atribuímos de pureza, justiça, bondade etc,
quase que identificando santidade com os atributos do nosso Deus?
Há muitas passagens no
Pentateuco que nos falam em santidade, mas trata-se sempre de uma santidade
ritual, ou santidade higiénica. Mesmo no Sinai, o povo teve de lavar as suas
vestes para se santificarem, mas era uma santidade que significava pureza
ritual a simples ausência de sujidade (sujeira imundícia).
Nessa época, a máxima
expressão de santidade, talvez fosse o sumo-sacerdote que tivesse tomado uns
tantos banhos rituais, e podemos pensar num cadáver, como o máximo de
imundícia, ou o desgraçado do leproso, rejeitado e escorraçado por todos,
obrigado a gritar nas ruas a causa da sua doença, e do seu crime, “Imundo...
imundo...”
É esta a informação que
encontramos em quase todo o Velho Testamento. Somente na época de Jeremias e
Isaías (600 a 500 AC) encontrei as primeiras referências a um outro conceito de
santidade, nomeadamente em Isaías 1:11/17 em que o Senhor rejeita os
holocaustos efectuados com todo o rigor da velha lei... Nomeadamente o vr. 16
“Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade dos vossos actos de diante dos meus
olhos: cessai de fazer mal.” Nota-se, nesta passagem, que purificação já é
alguma coisa mais que simples limpeza higiénica e passa a relacionar-se com a
bondade.
Mas é certamente nos
evangelhos onde a santidade passou a ter o significado que conhecemos hoje. Uma
das principais passagens encontramos em Mateus 15:11 “O que contamina o homem
não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o
homem.” Em contraste com pureza das comidas e a preocupação com os animais
imundos que não podiam ser utilizados na alimentação, Jesus preocupa-se com a
pureza nas palavras e pensamentos.
Gostaria hoje de meditar
convosco, numa dessas passagens, em que o Mestre põe em contraste os dois
conceitos de santidade. Essa passagem, bem sei que poderá causar certa
admiração a alguns, é a parábola do bom samaritano. Vejamos o que é que essa
parábola tem a ver com santidade.
A maior parte das
pregações sobre o assunto, pelo menos aquelas que ouvi e li, destaca a
indiferença do sacerdote e do levita, “que mais obrigação tinham de
ajudar....”, é a informação mais vulgar, e muitos outros dão uma interpretação
alegórica, afirmando que “descer de Jerusalém” é descer dos assuntos
espirituais para tratar das coisas materiais do mundo em que vivemos etc etc.
Certamente que como
exortação, tudo isso é possível, mas não num estudo bíblico. Deixemos pois
estes engenhosos pensamentos, para investigar o pensamento original do nosso
Mestre, pois estudo bíblico não é qualquer estudo que mencione versículos
bíblicos, nem podemos aceitar que qualquer sentido que se possa dar a uma
passagem seja uma correcta interpretação da Bíblia, por mais bem intencionado
que seja o seu autor e por mais simpática que seja a sua ideia.
Esta é das parábolas
consideradas de certa maneira um tanto “pacíficas” nos nossos dias. Parece à
primeira vista que já sabemos tudo sobre a frieza dos religiosos e do
comportamento do samaritano... Mas trata-se na verdade duma crítica que Jesus
apresenta, não só aos religiosos do seu tempo, como à própria teologia.
Tive de chegar a essa conclusão, ao examinar o contexto desta parábola.
Vamos começar por ler nas
nossas bíblias em Lucas 10:21/22. “Naquela mesma hora, se alegrou Jesus no
Espírito Santo, e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que
escondestes estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelastes às criancinhas;
assim é, ó Pai, porque assim te aprouve. Tudo por meu Pai me foi entregue; e
ninguém conhece quem é o Filho, senão o Pai, nem quem é o Pai, senão o Filho, e
aquele a quem o Filho o quiser revelar.”
Isto foi dito perante os
discípulos e alguns doutores da Lei, como veremos mais adiante. Segundo a
religião eles se consideravam os grandes e entendidos... É mais ou menos como
juntar todos os pastores, professores e alunos do seminário, missionários,
professores de escola dominical, evangelistas, presbíteros, diáconos etc. para
depois orar dizendo... “Graças porque há coisas que estes não sabem, mas esse
menino de escola dominical, ou esse velhote quase analfabeto, o irmão João ou a
irmã Maria, esses conseguem perceber, porque tu lhes revelaste”!!!... Como estudante de teologia não posso deixar
de me sentir desafiado por esta atitude do Mestre. Parece que há coisas que não
podemos alcançar só pelo nosso raciocínio, mas por vezes as pessoas simples
conseguem compreender melhor, por ser produto de revelação, e o Espírito do
Senhor se revela a quem quiser, quer ignorantes ou entendidos, utilizando todos
os métodos que entender, mesmo aqueles que a nossa teologia e a nossa tradição
considera indesejáveis, pois só o Senhor é soberano.
Penso que este episódio
deve estar relacionado, ou deve estar na origem do que vamos ler a partir do
versículo 25.... em Lucas 10:25/29. “E eis que se levantou um certo doutor da
lei, tentando-o, e dizendo: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? E ele
lhe disse: Que está escrito na lei? Como lês? E, respondendo ele, disse: Amarás
ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as
tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao próximo como a ti mesmo. (a).
E disse-lhe: Respondeste
bem; faz isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se a si mesmo, disse
a Jesus: E quem é o meu próximo?”(b)”.
Vr.25... Um doutor da
lei, fez uma pergunta a Jesus?!!!. Parece um caso pouco vulgar nessa cultura,
um teólogo desse nível fazer uma pergunta ao filho dum carpinteiro, que para
eles era um leigo em teologia.
O evangelista Lucas, diz
aqui que foi para experimentar a Jesus. No entanto, Lucas não foi apóstolo, ele
não estava presente neste acontecimento e limitou-se anos mais tarde, a
compilar todas as informações sobre a vida de Jesus. Talvez fosse essa a
opinião dos primitivos crentes. Não digo que não seja verdade. Quem somos nós,
para vinte séculos mais tarde tentar descobrir alguma coisa de novo.
Mas penso que, pelo menos,
não devemos abandonar a possibilidade de estarmos perante uma pergunta sincera
deste homem. Digo isto porque Jesus respondeu, o que geralmente não acontecia,
quando havia perguntas mal intencionadas. É bem possível que este teólogo
ficasse tocado pela pregação de Jesus, e que por baixo da sua aparente calma e
segurança tivesse uma consciência inquieta e incomodada pela pregação do
Mestre... porque o doutor da Lei bem sabia, melhor do que ninguém quais os
pontos fracos, contradições e principalmente a grande separação entre a sua
teoria e a vida prática do dia a dia.
Ele começa pela pergunta
mais importante: “Que farei para herdar a vida eterna?” Mas, será que não havia
informação sobre o assunto na Velha Lei?
Jesus o remete novamente
para a Lei. Afinal, parece à primeira vista, que havia solução para a vida
eterna na Velha Lei. Faltava somente pôr em prática tudo aquilo que ele já
conhecia.
Mas o doutor da Lei,
levanta outra questão: “Quem é o meu próximo?”
Lucas diz no seu
evangelho, que a pergunta foi para se justificar, dando a entender que ele não
fazia nem uma coisa nem outra, nem amava a Deus de todo o seu coração, nem ao
próximo como a si mesmo. Mas julgo que seria precipitado da nossa parte
limitarmo-nos a esta explicação.
Segundo o investigador
Joaquim Jeremias, esse assunto era muito polémico nessa época. Pois, se ninguém
tinha dúvidas do que significava ser membro do povo de Israel, pois tudo isso
estava muito bem explicado, pois eram os descendentes do povo de Israel
incluindo os prosélitos e os escravos já circuncidados, o mesmo não acontecia
com a palavra “próximo”, cujo significado dava origem a várias interpretações.
Para muitos dos fariseus,
o seu próximo limitava-se aos outros fariseus.
Os essênios consideravam
como atitude louvável o odiar todos os filhos das trevas. Até o nosso Mestre
faz uma referência a esta atitude em Mateus 5:43 “Ouvistes que foi dito: Amarás
o teu próximo, e aborrecerás o teu inimigo....”, portanto o inimigo não podia
ser o próximo.
O grande problema, para a
teologia da época seria a pergunta: Até que ponto deverei ser tolerante? Devo
considerar somente a minha família como o meu próximo?... E também os meus
vizinhos?... E também os outros judeus?... Até onde vai o conceito de
“próximo”?
Penso que para os judeus
mais ortodoxos o próximo seriam somente os outros judeus. É verdade que várias
passagens veterotestamentárias em especial nos livros de Êxodo e Levítico nos
falam dos direitos dos estrangeiros, lembrando o facto dos próprios judeus
terem sido estrangeiros no Egipto, e em Deuteronómio aparecem algumas vezes
referência aos direitos dos estrangeiros, viúvas e órfãos.
No entanto, não podemos
ignorar a realidade desse contexto histórico em que havia grande rivalidade
entre judeus e samaritanos. O velho problema da rivalidade entre os templos de
Jerusalém e Garizim, por motivos históricos, religiosos e económicos, estava no
seu auge.
Eu fiquei chocado quando
soube pelo livro do historiador Joaquim Jeremias, que o Templo de Garizim, que
os samaritanos construíram e que, com todos os seus erros se destinava a louvar
o Deus supremo, foi atacado e destruído pelos judeus, no ano 129 A.C..... Esta
é uma informação que não vem na Bíblia e que a nossa literatura não costuma
mencionar.
Como represália, segundo
Josefo, o historiador da antiguidade, houve um samaritano que por ocasião da
Páscoa, durante a noite, abriu alguns sepulcros de Jerusalém, desenterrou ossos
de cadáveres e os espalhou pelo Templo de Jerusalém para o tornar impuro....
Isto aconteceu já depois do nascimento de Jesus, que devia ser um menino quando
estas notícias abalaram todo o povo de Israel.
Jesus teria certamente
observado muitas vezes, os judeus mais “religiosos” que todas as tardes, ao
pôr-do-sol se viravam para Samaria para amaldiçoar os samaritanos e pedir para
que Deus os destruísse para sempre.
Penso que temos de
entender a pergunta desse doutor da Lei, no contexto histórico em que se
encontravam, em que havia fortes tensões não só entre judeus e estrangeiros,
mas principalmente para com os samaritanos. Para os que rodeavam o Mestre, o
próximo seriam os outros judeus... talvez também alguns estrangeiros, se
estivessem circuncidados, mas os samaritanos!!! isso é que nunca... nem pensar
nisso.
É neste ambiente, carregado
de ódio e emoção, que Jesus apresenta a parábola do bom samaritano, que vamos
ler, do versículo 30 a 37. Lucas 10:30/37
“E, respondendo Jesus,
disse: Descia um homem de Jerusalém para Jericó. E caiu nas mãos dos
salteadores, os quais o despojaram, e, espancando-o, se retiraram, deixando-o
meio morto.
E, ocasionalmente, descia
pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual
modo, também, um levita, chegando àquele lugar, e vendo-o, passou de largo.
Mas, um samaritano, que
ia de viagem, chegou ao pé dele, e vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; E,
aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o
sobre a sua cavalgadura, levou-o para uma estalagem, e cuidou dele; E, partindo
no outro dia, tirou dois dinheiros, e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida
dele; e, tudo o que de mais gastares, eu to pagarei, quando voltar
Qual, pois, destes três,
te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores?
E ele disse: O que usou
de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faz da mesma maneira.”
...descia um homem de
Jerusalém para Jericó... Com esta afirmação, nós imaginamos o mapa de Israel,
que muitas vezes temos nas nossas bíblias, e sabemos que se trata de duas
cidades vizinhas. No entanto, a reacção dos ouvintes de Jesus foi certamente
bem diferente, pois logo devem ter identificado esse local como um local de
alto risco.
As duas cidades estavam
afastadas cerca de 27 quilómetros através de caminhos que nos nossos dias o autocarro
(ónibus) de turismo percorre rapidamente, mas nessa época seria um simples
caminho íngreme que subia pela montanha acima serpenteando por entre as rochas,
num terreno muito acidentado, com cavernas onde os malfeitores facilmente se
escondiam, pois os romanos, que construíram uma magnífica via romana em
direcção à moderna Samaria, entenderam que a velha cidade de Jerusalém não
tinha interesse comercial que justificasse a construção duma via romana.
Mas havia outro motivo
para que esse local fosse dos mais perigosos. É que do ponto de vista dos
assaltantes, era dos locais mais “rentáveis”, onde geralmente o crime
compensava, pois todo o judeu de longe ou de perto, trazia os seus dízimos e
ofertas para entregar no Templo de Jerusalém. Os de perto, traziam os seus
animais para oferecer, e os de longe traziam em dinheiro o produto da venda dos
animais oferecidos ao Senhor.
Além desses peregrinos,
havia também intenso tráfego de religiosos, pois segundo nos informa o
historiador Joaquim Jeremias, muitos sacerdotes e levitas que exerciam as suas
funções em Jerusalém, moravam em Jericó ou periodicamente “fugiam” da confusão
da grande cidade para descansar no ambiente mais calmo de Jericó.
De tal maneira os
assaltos aos peregrinos, nesse local, eram comuns, que acabaram por afectar a
própria economia do Templo, que criou uma organização policial para patrulhar
esse caminho e proteger os peregrinos, protegendo também a economia do Templo.
Talvez o mais natural
seria o assalto a um homem que subisse a Jerusalém, em especial um homem que
viesse de longe e que trouxesse os dízimos e ofertas de alguns anos de vida
próspera em terras distantes... Mas este descia, voltava de Jerusalém. Mesmo
assim, talvez fosse um alvo apetecível pelos assaltantes, pois deveria ainda
ter dinheiro para uma longa viagem de regresso à sua terra, dinheiro que o
viajante tentou defender, pois houve luta e ficou quase morto à beira da
estrada.
Temos depois a descrição
do sacerdote e do levita que passaram sem dar ajuda ao viajante que
aparentemente já estaria quase morto.
Penso que perante esta
afirmação, a reacção e o pensamento do homem do nosso tempo é bem diferente,
talvez mesmo o oposto, ao pensamento dos que escutavam o nosso Mestre.
O nosso primeiro
pensamento é que Jesus apresenta o sacerdote e o levita para mostrar que até
aqueles que mais obrigação teriam de ajudar, por serem religiosos, até esse
falharam. É também esta a interpretação da maior parte dos pregadores, dos
nossos dias, mas suponho não ser essa a intenção do Mestre.
Tanto o sacerdote, como o
levita, certamente já conheciam muito bem esse caminho tão perigoso, já estavam
habituados a ver cenas de violência, assaltos, já tinham visto pessoas mortas à
beira do caminho.... e também conheciam muito bem a Velha Lei.
Certamente que conheciam
todo o Velho Testamento muito melhor do que nós, pois eles o liam e o
estudavam, o que já não está a acontecer connosco... Por vezes tenho a sensação
de que estamos a formar um novo cânon....., um cânon do cânon
veterotestamentário, pois há passagens do Velho Testamento que são lidas nas
nossas igrejas e há passagens em que nunca há tempo para ler... que ficam
sempre para a próxima vez... passagens que os nossos pregadores têm medo de
encarar, como esta que vamos mencionar.
O viajante já não se
mexia, aparentemente era já um cadáver. E o que dizia a Velha Lei sobre o
cadáver? Vejamos em Números 19:13 “Todo aquele que tocar a algum morto, cadáver
de algum homem que estiver morto, e não se purificar, contamina o tabernáculo
do Senhor: aquela alma será extirpada de Israel; porque a água da separação não
foi espargida sobre ele, imundo será; está nele ainda a sua imundície.”
É evidente que se o
sacerdote ou o levita tocasse no viajante e esse já estivesse morto ou viesse a
falecer nessa altura, ficariam impuros e impossibilitados de exercer as suas
funções no Templo durante sete dias, durante os quais teriam de se purificar
segundo indicado nos versículos anteriores em Números 19:1/12
Afinal.... era a própria
religião que os impedia de ajudar... Penso que foi este o pensamento que o
Mestre transmitiu aos seus ouvintes e que em grande parte já se perdeu nos
nossos dias. Eles não ajudaram porque eram religiosos e queriam permanecer
religiosamente puros e religiosamente perfeitos.
Esta é uma das parábolas
mais polémicas que Jesus contou e todos os seus ouvintes dessa ocasião assim
devem ter compreendido, aceitando inicialmente com entusiasmo a crítica
anti-clerical do Mestre, esperando o terceiro personagem, que tudo indicava
fosse um vulgar judeu (judeu comum), pois nessas histórias havia normalmente
três personagens.
É nessa altura que Jesus
os escandaliza apresentando o samaritano, o inimigo, que os mais religiosos
odiavam e amaldiçoavam. Foi um samaritano que o Mestre escolheu para herói
desta história. Nos nossos dias, seria talvez um palestino.
A parábola não era
somente anti-clerical, pois todos estavam incluídos na crítica do Mestre.
O samaritano não
perguntou quem era o viajante. Não sabemos se ele conhecia bem as Escrituras e
se sabia que iria ficar impuro por tocar num cadáver... Mas para os
“religiosos” ele já era um impuro por ser samaritano... portanto nem se
preocupou com isso.
Diz-nos o versículo 34
que ele “...aproximando-se, atou-lhe as feridas, deitando-lhes azeite e
vinho...” É bem possível que transportasse consigo azeite e vinho para a
viagem, pois o azeite era o protector solar para a sua pele, num clima quente e
seco e o vinho seria para acompanhar as suas refeições. Nessa altura, utilizou
o vinho devido às suas propriedades anti-sépticas e anestésicas e o azeite como
protector da pele.
É interessante a curta
conversa do samaritano com o hospedeiro. É bem possível que o samaritano fosse
um comerciante habituado a viajar, pois parece que conhecia bem o hospedeiro e
a expressão utilizada “...quando voltar”, parece indicar pessoa conhecida e
respeitada. A importância entregue, de dois denários, equivalia a dois dias de
salário mínimo.
Jerusalém era uma cidade
edificada no alto do monte que dependia do exterior, quer para alimentação dos
seus habitantes, quer para matéria-prima para as suas pequenas indústrias.
Muitos estrangeiros eram os profissionais de transporte para abastecimento da
cidade. É bem possível, que entre o hospedeiro e o samaritano, embora separados
pela religião, os interesses comerciais em comum tivessem criado uma profunda
confiança e amizade.
Mas afinal, que
conclusões podemos tirar desta parábola?
Inicialmente, Jesus apela
para a Lei, mas depois o seu herói é precisamente o samaritano, que não seguiu
a lei veterotestamentária, e que segundo essa mesma Lei deveria ser considerado
impuro.
Não há dúvida de que, de
acordo com a Lei, tanto o sacerdote como o levita ficariam impuros sob o
aspecto religioso se tocassem no viajante e ele viesse a falecer nas suas mãos.
Mas talvez tenhamos de considerar uma certa hierarquia das Leis.... e a Lei de
do amor de Cristo, que se deve manifestar em todos os seus é a nossa Lei
suprema, que tudo ultrapassa e que inclusive pode inverter os nossos valores.
Mas não estão todos estes
problemas já ultrapassados, depois de 20 séculos de cristianismo? Para quê
lembrar essas velhas leis, há tanto ultrapassadas?
Nos nossos dias, tudo que
as igrejas ou juntas missionárias decidem, não está sempre em sintonia com o
pensamento de Jesus? Não vivemos nós de acordo com os ensinos do nosso Mestre?
Podemos imaginar, como
seria a história do bom samaritano contada nos nossos dias?...
Era domingo de manhã, e
estava quase na hora da escola dominical. À beira da estrada estava um homem
caído. Já não se mexia e estava todo sujo do sangue que derramara.
Passa o carro do Pastor
da igreja local, que até poderia ajudar.... se não estivesse já na hora da
escola dominical... e com tanta gente à sua espera na igreja... Não. Em
primeiro lugar estão as suas funções na igreja. Em primeiro lugar o Trabalho do
Senhor... Mas o pastor sente-se tocado e exclama: “Mas que país é este!... Com
toda esta insegurança nas nossas estradas.. Estou profundamente chocado com
estes problemas... Mas isto não vai ficar assim... Vou já tomar providências..
É um bom tema para uma pregação... Venham logo à noite à minha igreja e logo
vão ver a empolgante pregação que vou apresentar sobre a insegurança nas nossas
estradas...” E o pastor fecha energicamente a porta do carro, e acelera a toda
a velocidade a caminho da sua igreja, entusiasmado com a sua própria
espiritualidade.
Depois vem o
superintendente da Escola Dominical. Pára bruscamente o seu carro quando vê o
homem ferido na borda da estrada.... e até poderia ajudar... se não estivesse
já na hora da escola dominical. E logo nesta altura, em que no domingo anterior
fez um apelo para que todos fossem pontuais.... Não. Em primeiro lugar estão as
suas funções na igreja onde vai falar do amor de Jesus. Em primeiro lugar o
“Trabalho do Senhor”.
Em seguida vem o
imigrante, que veio de África, ou da Ucrânia, ou do Brasil, ou da Rússia, um
jovem dinâmico e trabalhador. Está há pouco tempo em Portugal, mas já tem onde
morar e até já comprou um carro muito usado em que é o terceiro ou quarto dono,
mas é o seu carro, fruto do seu trabalho árduo em que faz os trabalhos que os
outros não querem fazer.
Nesse domingo levanta-se
cedo, leva o seu carro para lhe dar melhor aspecto, pois gastou as últimas
economias a substituir o forro dos bancos já rasgados, por outros novos. Toma
banho e veste as suas melhores roupas, para ir à igreja, à escola dominical.
Mas o Senhor tinha outros
planos. Tinha para ele uma bênção que os outros desprezaram. Também vai a
caminho da igreja, nesse domingo de manhã, quando vê o ferido à beira da
estrada. Aproxima-se, vê que o ferido ainda respira. Não tem telemóvel
(celular) para telefonar à ambulância, mas o ferido está a perder muito sangue
e tem de tomar uma decisão urgente. Pega no ferido e coloca-o no seu carro. As
suas melhores roupas ficam manchadas de sangue e lama, assim como o forro dos
bancos que mandou colocar na semana passada. Leva o ferido às urgências (à
emergência) do hospital, onde tem de prestar declarações às autoridades
policiais.
Por fim chega à sua
igreja, já quase no fim da escola dominical. É uma igreja tradicional, onde
nesse domingo de manhã todos se apresentam com as suas melhores roupas.
Quando termina a escola
dominical, como de costume, apresentam o relatório desse dia. Alunos
inscritos..... Visitantes........ Alunos pontuais....... O pastor e o
superintendente da escola dominical respiram de alívio. Conseguiram chegar a
horas, foram pontuais.... O que seria do seu prestígio como crentes, se não
dessem o bom exemplo.
Mas muitos olham para o
desgraçado que chegou quase no fim.... Veio com a roupa toda suja.... Mas que
falta de respeito pela Casa do Senhor, onde tudo deve ser santo, limpo e
perfeito!!... Quando será que ele vai compreender o Evangelho?!! Quando será
que se vai converter ao Senhor?!!!
Nesse domingo o herói da
nossa ilustração volta para casa.
Poderíamos dizer que dava
graças a Deus e que mostrava uma grande fé... mas infelizmente, na vida real
não há muitos heróis...
Ele está desiludido, foi
demais para a sua fé.... Tentou fazer o melhor e bem sentiu o desprezo e os
olhares de reprovação dos “santos” da sua igreja.
Esta ilustração acaba
mal, como tudo, ou quase tudo, na vida real. Mas, quem aceita Cristo como seu
Salvador e Mestre, tem de aceitar o seu desafio e sujeitar-se a tudo que possa
acontecer.
Será que depois de 2000
anos já compreendemos a mensagem do nosso Mestre e o seu conceito de santidade?
Será que tudo mudou? Será que ainda nem tudo mudou?
Será que temos de voltar
ao princípio?
Que o Senhor nos oriente
na nossa resposta a estas perguntas.
Que possamos reflectir
com o nosso Mestre. Este pormenor é muito importante, “reflectir com Jesus”
pois tanto para o nosso Mestre como para o doutor da Lei a pergunta era a mesma
“Quem é o meu próximo?”
Mas o doutor da Lei
procurava uma definição teórica, uma definição teológica de “próximo” (nisso
nós somos bons), enquanto para Jesus isso significava acção.
Mais importante do que
uma definição teórica da palavra “próximo”, é perguntar: Onde está o meu
próximo para que o ame e o ajude como Jesus ensinou. Pois só esses
compreenderam quem é o seu próximo.
(a). Este versículo pode
levantar dúvidas entre os leitores mais atentos, que tentem investigar onde se
encontra a afirmação do legista na Velha Lei de Moisés.
Também não encontrei no
Velho Testamento o versículo mencionado pelo Doutor de Lei. O mais parecido que
poderão encontrar está em Deuteronómio 6:5 Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, com toda a tua alma e de todas as tuas forças. Não há qualquer
referência ao entendimento nem ao amor ao próximo.
Há algumas hipóteses para
explicar este problema:
Em algumas cópias dos
manuscritos do Deuteronómio traduzidas para o grego, o “coração” foi traduzido
por “entendimento” de acordo da cultura grega da época que considerava o
coração e não o cérebro como o centro do pensamento ou reflexão.
O legista pode estar a
referir-se a algum livro bem conhecido nessa época, que não foi incluído no
cânon veterotestamentário, que só foi organizado na cidade de Jâmnia cerca do
ano 90 ou 100 depois de Cristo.
Mas o que considero mais
provável, é que o legista tenha feito confusão e citado uma afirmação do
próprio Jesus Cristo, dada a sua semelhança com Deuteronómio 6:5.
(b). Não encontro em todo
o Velho Testamento uma definição de “próximo”. Há no entanto passagens em que
aparece a palavra “próximo” num contexto que apoia o pensamento
veterotestamentário que limita o significado de “próximo” aos outros judeus,
como por exemplo em Levítico 19:17/18 Não odiarás a teu irmão no teu coração;
não deixarás de repreender o teu próximo, e não levarás sobre ti pecado por
causa dele. Não te vingarás nem guardaras ira contra os filhos do teu povo; mas
amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor.
Pr. Rafael Novais 15/10/2012
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